1.6.05

Cego de Visão

A magreza consumia-lhe, faminta
Como se quisesse roubar seus ossos
Pois já não havia carne alguma
Só o esboço, um croqui, bisonho, em pelancas

Não havia traço do que poderia ter sido

Desconhecido o motivo da derrocada
Incerto também se existe crise
Naquela visão triste
Vida esvaindo e morte em riste

Expondo a todos aquele espetáculo

Sem saúde, sem beleza, sem virtude
Entregou-se a pista perigosa
Procurou paz num carro apressado qualquer
Queria privar os expectadores da aterradora visão

Mas há cegos pelo caminho

Que têm o sentir como profissão
Enxergam além dos puros olhares
Mergulham na feiúra volátil das estampas
Respirando a beleza esquecida em farrapos de vida

Aspiram o bem de quem já não o tem

Seria mais uma vítima do excesso de azar
Mais uma culpada pela fraqueza da sorte
Há existências dignas de pena
Reais merecedoras da morte

Trabalham os cegos

Repletos de autoridade imobilizam a via mortal
Chegam reforços na viatura flamejante
Munidos da parafernália necessária
Que cessará o tumulto causado

O silêncio toma conta do lugar

Saem os cegos com seus escudos de espelho
Abrem um clarão em volta daquele arremedo de vida
Que desanimado se entrega ao conforto áspero do chão
Suplicante por um fim indolor, eficaz e voraz

O circulo de reflexos mostra opções

Variadas, boas e perturbadoras
Umas infinitamente piores que o agora
Algumas melhores que os mais lindos sonhos
Um único espaço vazio e a via vazia ao longe

Nossa amiga abatida resolve levantar

Descobriu que ainda havia força para mais alguns passos
Que se quisesse conseguiria andar
Desdenhou dos infortúnios e glórias das imagens
Resolveu caminhar

Descobriu que sabia enxergar

Cambaleante e feliz dava passos fracos
Imponentes, comoventes: decentes
Sustentava sua fraqueza com a devida austeridade
Pedia ajuda como quem reconhece o valor

De querer ser ajudado

Daquele instante em diante
Uma vida nova desestagnava
O corpo esvaziado do ontem
Deu lugar as chances do presente difícil

O futuro continua incerto e inseguro

Porém existe
O póstumo se posta de pé e caminha
Ali jaz um defunto que vive
Promessa absoluta da vontade de ser feliz

Nem todos acordam vivos quando abrem os olhos

Somos mortos se não fazemos por nós
Egoístas, mesquinhos e pobres se sós
Infelizes aqueles que não entendem
A verdade absurda do sorriso intacto das crianças

Que amam na mais completa cegueira

Escolhem pelo instinto
Pelo cheiro, carinho e confiança
Mirabolantes, entregam-se ao colo santo
Que lhes reconforta e traz esperança

Desconcertantemente são

Que seu destino refletido em nós
Seja tão maravilhoso quanto seu passado inteiro
Pois elas sabem amar a todos
Com sentimento simples, verdadeiro

Sem espaços para reflexão

Mire-se nos olhos do dito sadio
Como se este fosse fisicamente incapaz
Encontre nele a opacidade branca pacificadora
Que não lhe reflete jamais

Sem sua imagem pronta é você quem se faz



P.S: Gostaria de explicar o motivo e o porquê deste texto. Hoje, ao sair para trabalhar, normalmente, o transito ruim de costume estava pior. Uma viatura do corpo de bombeiros estava resgatando uma cadela. Magra, mal tratada, talvez vadia e sem dono, mas uma vida. Assustada, tinha os quantos baixos, rabo entre as pernas e aquele olhar de: me ajude por favor. Foi o que ocorreu. Os bombeiros pararam o transito, liberaram o caminho e puseram-na em segurança, sem puxá-la ou forçá-la em momento algum.
Já vi bicho gente em situação igual ou pior e felizmente existem bombeiros de vida por aí, esperando por um chamado. É bom perceber que certas pessoas entram no fogo literalmente por semelhantes que sequer conhecem e em certas situações que estes mesmos são capazes de arriscar a própria vida para salvar a daqueles que talvez nem as tenham mais.
Que tenhamos a decência de sabermos quando pedir ajuda. E mais importante, que quando formos ajudar, que façamos de coração, sem esperar gratidão, sem estarmos motivados pela aparência ou conhecimento sobre aquele que receberá nossa ajuda. Que antes de começarmos a fazer qualquer coisa em nossas vidas, saibamos que estamos fazendo por simplesmente querermos fazer. Obrigado e desculpem qualquer maluquice. Beijos

Nenhum comentário: